Em 1849, Austen Henry Layard, arqueólogo britânico, escavou um dos maiores achados do século 19...
Escrito por:Pedro Henrique Rodrigues - Pesquisador do MAB
Publicação:06/06/2025
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Em 1849, Austen Henry Layard, arqueólogo britânico, escavou um dos maiores achados do século 19, os primeiros das centenas de tabletes cuneiformes pertencentes a biblioteca de Assurbanipal, rei da Assíria (séc. 7 a.C.), perto de Mosul, no Iraque (ruínas da antiga Nínive). Arqueólogos, historiadores e eruditos desafiavam-se na tradução desses diversos pedaços de tabletes. Mas foi somente em 1872, que George Smith conseguiu compilar e traduzir parte dos escritos, e em seguida os apresentou para a Sociedade de Arqueologia Bíblica. Os escritos que G. Smith traduziu, hoje o conhecemos como épico de Gilgamesh. Esse foi apenas o início na revolução ocasionada nos estudos de história antiga proveniente desse achado [1].
Além da história de Gilgamesh, relato caldeu sobre um dilúvio que submergiu o mundo, outros textos mitológicos foram decifrados e compilados. Entre eles, o Enuma Elish, o qual retrata a criação numa perspectiva babilônica; o Mito de Etana, acerca do primeiro rei sumério de Kish e o Mito de Adapa, sobre a queda do homem e como consequentemente se tornaram mortais, dentre outros. Além da biblioteca de Assurbanipal, outros textos foram encontrados em sítios distintos, como os escombros da cidade de Nippur ou através da invasão arqueológica ao Egito, oriundo das excursões napoleônicas. Desse modo, além da cultura babilônica, pôde-se descobrir o que outros povos, vizinhos dos protagonistas da Bíblia, como os egípcios, sumérios e cananeus acreditavam, concernente à funcionalidade do cosmos, sua existência e suas narrativas primordiais.
Sumariamente, devido às atividades arqueológicas dos últimos dois séculos, descobriu-se, de certa forma, o que seriam as primeiras páginas de Gênesis (mais especificamente capítulos 1 a 11) na visão dos povos adjacentes a Israel. Ora, cada povo tinha a sua própria forma de relatar tais fenômenos. Contudo, a mitologia desses povos, diferentemente da encontrada em Gênesis, não é tão fácil de ser sistematizada, pois eles não possuíam um único relato uniforme passado de geração em geração (como o que se tornou a Bíblia Hebraica). Na realidade, o que existem são vários textos (mais especificamente fragmentos) que foram achados dentro da mesma civilização, mas que são distintos, dependendo do período ou da localização.
Mas qual a importância desses relatos? Em síntese, todos esses textos apresentam similaridades intrínsecas, assim como diferenças. Dessa forma, quando se observa o texto bíblico, à luz dessas outras cosmogonias (cosmogonia = vir a ser do mundo), consegue-se entender melhor a própria narrativa bíblica. Pelo simples motivo de que são povos contemporâneos, o que significa que em essência possuem uma linguagem e pensamento comuns ou intercambiáveis, diferentemente de nós, leitores atuais, que trazemos nossas linguagens e pressuposições ao texto. Encapsulando o texto ao nosso mundo moderno.
Este artigo popular é o primeiro de uma série de textos que abordarão as similaridades e diferenças entre as cosmogonias mesopotâmicas e egípcias com o relato bíblico, e como elas nos ajudam a compreender melhor a Bíblia. Este primeiro terá seu foco na ideia da criação do mundo a partir do conceito de caos/desordem.
A partir de uma análise comparativa das linhas iniciais pertencente a diversas cosmogonias pode-se chegar a uma primeira conclusão: “Nos princípios era a desordem”.
Três tradições principais da cosmogonia egípcia se destacam (de três localidades distintas), devido aos achados arqueológicos. (1) Em Heliópolis, todo panteão de deuses (que representam o mundo) provinham de um único deus, Atum, sendo que ele auto se gera (literalmente virando um ovo) a partir das águas primordiais (Nu). Primeiro, tornando-se um “elevado de terra”, emergindo das águas e então, evoluindo-se nos outros deuses, através da separação de si próprio, dando assim forma ao mundo. (2) Ao sul, em Hermópolis, encontra-se uma complexa teologia em torno da Ogdóade, um grupo de oito deuses que representam o caos inicial (escuridão e águas). A partir de suas interações, surge um lótus (depois do “elevado de terra”) e então as separações e o mundo. [2] (3) Próximo a Cairo, os teólogos de Mênfis desenvolveram uma tradição do deus que cria através da palavra. Manifestado primeiramente como Tatenen, o monte de terra primordial proveniente das águas e depois como Ptah, que a partir da terra, dá forma ao mundo através do desejo de seu coração e seu verbo. [3]
E. A. Wallis Budge (1857-1937). Os deuses que surgiram a partir de Atum e os quais representam o mundo físico.
Se direcionando para a Mesopotâmia, ao nordeste de Israel, várias civilizações desenvolveram suas cosmogonias, sendo que entre elas achamos algumas confluências. Nos povos sumérios, entre os fragmentos de relatos textuais que se conservaram, está o da Ovelha e o Trigo, que descreve o estado pré-criação do mundo da seguinte maneira: “(...) sem o aparecimento de ovelhas, não houve numerosos cordeiros, e sem cabras, não houve numerosos cabritos (...) As pessoas daquela época não sabiam o que era comer pão. Não sabiam vestir roupa; andavam com os membros nus pela Terra. Como ovelhas, comiam erva com a boca e bebiam água das valas” [4]. Assim sendo, o fragmento está descrevendo a pré-criação como falta de ordem. Em outra porção de texto, encontramos a deusa Nammu, a água primordial, como a mãe que gerou o Céu e a Terra. Não obstante, há também outro excerto que relata En-lil (atmosfera) separando Nammu e criando assim, An (Céu) e En-ki (terra). [5]
Concernente ao mito de criação, na Babilônia, possuímos 7 tabletes da narrativa épica do Enuma Elish (“quando no alto”), escavadas, como já mencionado, na biblioteca de Assurbanipal. Essa narrativa vai lidar com a criação em um aspecto diferente, através de uma batalha entre Tiamat e Marduk. Entretanto, antes de tudo, como nas outras cosmogonias citadas, novamente o princípio era água. Mais especificamente, essa água primordial se divide em duas, Apsu (água doce do oceano) e a Tiamat (água salgada) [6]. O mundo físico, céus e terra, é apenas criado após a batalha, quando o corpo de Tiamat é separado em duas partes pelo vencedor.
Sendo assim, tendo em vista todas essas cosmogonias aqui referenciadas, posso reiterar as palavras de John Walton: “No mundo antigo, algo vinha a existir quando era separado como uma entidade distinta, recebia uma função e recebia um nome” [7]. Isto é, antes, na condição pré-mundo, não faltava matéria, mas ordem e diferenciação. Assim, na mentalidade do Antigo Oriente Próximo, a ontologia (a existência) está ligada à função e não a substância, pois o ato de criar é em essência um ato de separação e ordenação.
Quando nos direcionamos à primeira página da Bíblia, encontramos o mesmo conceito de mundo. Observe com atenção a dupla descrição do mundo pré-criação de Gênesis 1:2. (1) Era “sem forma e vazia”. Essa mesma expressão (tohu vavohu no original) aparece apenas duas outras vezes na Bíblia: Isaías 34:11 e Jeremias 4:23, sendo elas referências diretas ao próprio Gênesis. Elas descrevem a destruição proveniente dos humanos, fazendo com que a terra fique como um deserto, sem vida. (2) Tinha “escuridão” sobre a face do “abismo”. A tradução da palavra hebraica tehom como abismo, traz concepções diversas aos leitores modernos, normalmente associando a um precipício infinito e escuro. Contudo, quando vemos essa palavra em outros textos bíblicos (36 no total: Gn 7:11; 8:2; Êx 15:5,8; Sl 78:15; 135:6 e outros), claramente percebe-se a referência a águas profundas/abissais, em sua maioria contendo um caráter perigoso/caótico (Jn 2:5 - paralelo com a sepultura).
Somando a descrição pré-criação (um lugar inabitável com as águas primordiais), os verbos utilizados pelo autor para descrever os atos de Deus também demonstram essa ideia, que o ato de criar não é focado na matéria, porém na ordenação. Verbos como “separar” e “chamar” estão no centro das ações divinas, sendo que nos primeiros 3 dias da criação, as problemáticas apresentadas no versículo 2 são resolvidas. A escuridão no primeiro dia, as águas abissais no segundo e ao terceiro, o tohu vavohu com a porção de terra seca que surge das águas, as quais fertilizam o solo trazendo a relva. Assim, a criação é ordenada e ao longo dos três dias subsequentes, o ambiente é povoado por entidades dotadas de atribuições e funções específicas.
Importante mencionar que, o primeiro agente no texto a inverter a situação de desordem e caos de Gn 1:2 é o Espírito. Antes estava a escuridão sobre a face do tehom, porém na próxima frase paralela, o Espírito se manifesta, resultando na transmutação do tehom em água “não caótica”, a qual, conforme previamente sublinhado, traz vida ao regar o primeiro elevado de terra [8].
Uma última consideração emerge a partir dessa compreensão de uma ontologia da função [9] do que significa ser humano. Dentro de tal lógica, a Bíblia não define ser humano como uma máquina bioquímica, enquanto um ente meramente composto de 70% água, preenchido de moléculas ou qualquer outra característica material a partir das substâncias que o compõem. Pelo contrário, no contexto do pensamento do Antigo Oriente Próximo, a identidade humana, de acordo com o relato de Gênesis, está intrinsecamente associada à sua função de ser a Imagem e Semelhança de Deus, o imitando, a partir do cumprimento de suas funções de dominar a terra e os animais (Gn 1:28), guardando e cultivando (Gn 2:15). A caneta do Pregador do livro de Eclesiastes encerrará com a seguinte nota enfática: “Teme a Deus, e guarda os seus mandamentos; porque isto é, toda a humanidade.” (Eclesiastes 12:13). [10]
[1] Gerhard F. Hasel. The Significance of the Cosmology in Genesis I in Relation to Ancient Near Eastern Parallels.
[2] Mircea Eliade. História das Crenças e das Ideias Religiosas I: da idade da pedra aos mistérios de Elêusis.
[3] Jacobus V. Dijk. Myth and Mythmaking in Ancient Egypt.
[4] Tradução nossa.
[5] Bernard F. Batto. In the Beginning: Essays on Creation Motifs in the Ancient Near East and the Bible.
[6] Robin A. Perry. The Biblical Cosmos: A Pilgrim’s Guide to the Weird and Wonderful World of the Bible.
[7] John H. Walton. O Pensamento do Antigo Oriente Próximo e o Antigo Testamento: Introdução ao mundo conceitual da Bíblia Hebraica. Editora, Vida Nova.
[8] Tertuliano, prolífico escritor dos primórdios da igreja, vai desenvolver a doutrina do batismo através de Gênesis 1:2, De Baptismo.
[9] John H. Walton.
[10] Tradução nossa.