As cosmogonias são relatos fundacionais, muitas vezes transmitidos oralmente, que pertencem a diversas...
Escrito por:Thiago Abdala Barnabé - Historiador do MAB
Publicação:05/06/2025
As cosmogonias são relatos fundacionais, muitas vezes transmitidos oralmente, que pertencem a diversas culturas ao redor do mundo. Estes textos são essenciais para definir a identidade de um povo ou nação. A cosmogonia proporciona ordem e significado à realidade, oferecendo sentido a um mundo desorientado [1]. Nesse viés, elas podem ser consideradas narrativas sobre o "vir a ser" do mundo, dos deuses (denominado especificamente também de teogonia), dos animais e de todos os seres, que subsequentemente estruturam o ethos de uma civilização.
No primeiro artigo desta série sobre "Cosmogonias", observamos que o texto bíblico compartilha um certo Sitz im Leben (contexto vital) com as culturas circunvizinhas. Dessa maneira, a Bíblia é escrita utilizando uma linguagem, símbolos, imagens e ideias comuns a essas culturas. Assim, o objetivo deste artigo popular se estrutura numa tentativa de compreender o texto de Gn 1:3-5 sob a ótica de seu ambiente de composição cultural, dimensionando observar as tensões “luz e trevas” da narrativa e os seus possíveis desdobramentos teológicos/existenciais para nossas vidas.
Nas narrativas mitológicas do Antigo Oriente Próximo, era comum que certos elementos naturais assumissem a forma de deuses. Como postula Walton: “[...] o nascimento dos deuses não tem relação com sua existência física ou material. Tem relação com suas funções e papéis, porque o nascimento deles está ligado à origem dos fenômenos naturais” [2]. Isso ocorre, por exemplo, com a figura de Baal (muito citada na Bíblia), que era conclamado como Senhor da tempestade ou deus da chuva, ou mesmo com a deusa Ashera, deusa da fertilidade que era representada pela figura da árvore ou tronco.
No relato de Gn 1, vemos que a luz é fundamental na narrativa. Ela é o primeiro elemento criado pela voz de Elohim. Mas como será que a luz era representada em outras cosmogonias, isto é, em outros relatos de origem dos povos vizinhos aos hebreus? E também vale a pena perguntar, que função a luz de Gn 1:3 teria?
Na cultura egípcia, nos chamados Textos de Execração e no Livro dos Mortos, é mencionado um conflito cósmico entre Apófis, a Grande Serpente, e o deus sol Rá. Para eles, o sol era representado por uma grande barcaça de Rá (ver figura 1 abaixo), que navegava pelo céu do amanhecer ao anoitecer e depois descia para o submundo. Contudo, ao velejar pelas escuridões, Rá juntamente com outros deuses e deusas, eram atacados por Apófis. O objetivo de Apófis, a Grande Serpente e personificadora da escuridão, do caos e da morte, era impedir que a ordem do mundo fosse instaurada pelo nascer do sol. Assim, em confluência com boa parte das mitologias antigas, o nascer do dia era resultado de um conflito eterno entre Rá e Apófis, marcando uma espécie de temporalidade cíclica, onde o deus supremo deveria lutar eternamente contra o monstro mítico [3].
A cabo de menção, temos exemplos de conflitos semelhantes na mitologia nórdica, com o lobo Skoll (ou Sköll, "Treachery" em nórdico antigo) que persegue os cavalos Arvak e Alsvid, os quais puxavam a carruagem Alfrodul que carregava a deusa Sol, tentando comê-la e impedindo o nascimento do dia. Mas como a luz era vista no relato de Gênesis? Teria sua função parecida com os relatos das nações circunvizinhas?
Figura 1: Barcaça de Rá representando o deus do sol, Rá, matando a Grande Serpente do Caos, Apófis, para fazer nascer o dia. Disponível em: Sun god Ra and the Great Serpent god Apep Apophis fights in the Underworld (milleetunetasses.com)
וַיֹּאמֶר אֱלֹהִים יְהִי אֹור וַיְהִי־אֹור׃
E disse Elohim: Seja Luz! E a luz foi
Em Gn 1 é descrito que no princípio de todas as coisas, tudo era escuridão e vazio absoluto (tohu vavohu). A desolação de todas as coisas representava o estado caótico da realidade, onde o que tudo estava sem “forma e vazio”, estava sem função e ordem. Ora, mas é dito no v. 2, que o Espírito (ruah) abranda as águas caóticas e aparentemente, estabelece uma resolução da trama do universo. No entanto, por mais que as águas primordiais agora estivessem controladas, as trevas ainda permaneciam sob a face do abismo (tehom) - marcando ainda uma certa irresolução na narrativa.
É curioso observar que a sequência narrativa em Gn 1, se dá pelo fato de que Elohim finalmente rompe o silêncio do cosmos que outrora estava em formação, para assim fazer nascer a palavra. Nos dois primeiros versículos não vemos nenhuma fala de Deus. Mas então por que Deus passa a falar? No relato babilônico do Enuma Elish, por exemplo, é dito que no princípio: “Quando em cima os céus não haviam sido nomeados e a terra firme abaixo não havia sido chamada com nome.” Deste modo, a nomeação no mundo antigo tinha como papel evocar, trazer algo à existência e dar autoridade (função) para aquilo. Por isso Deus começa a falar. Falar é criar.
Assim, no verso 3, Elohim fala, ou melhor, ordena e dá nome: “Seja luz” (Haja luz, em outras traduções). E desse modo, o mundo que antes só conhecia a noite (o caos), dá lugar agora para a manhã. Que fantástico e maravilhoso! O primeiro papel da palavra, portanto, se dá em criar uma luz que não apenas agora tem o poder de revelar as coisas no mundo, como também, resolver as “trevas” que jaziam sobre a face do abismo. Com isso, os elementos que eram considerados inimigos em outras culturas, como as trevas e as águas (serpente Tiamat ou a própria serpente Apófis), são agora contrapostos com as ações gentis e calmas de Deus que tem tudo sob seu domínio por meio da palavra.
Dessa maneira, o primeiro ato criativo de Deus é o ato de fazer o mundo amanhecer, de trazer existência ao que estava escondido. É somente porque o mundo está visível que as outras coisas podem ser criadas - elas podem ser vistas e consequentemente, nomeadas. Mas qual seria então a função dessa luz criada? A “luz” (‘or) assume um papel duplo na narrativa: (1) a primeira vista, ela concebe visibilidade para as coisas e por meio dela, Deus pode dizer que as coisas criadas são “boas”, pois ele as enxerga, as faz visíveis [vv. 3, 10, 12, 18, 21, 25]; (2) por outro lado, ela também marca o tempo, delimitando o que chamamos hoje de Dia e Noite.
Por conseguinte, a primeira Luz criada em Gn 1:3 não se configura necessariamente como um “luzeiro” físico, como aparece no quarto dia ao Deus criar o sol e a lua (que demarcavam as estações e meses e eram vistos também como deuses em outras culturas). Karl Barth, renomado teólogo do século XX, afirma que a Luz de Gn 1:3 aparece primeiro, antes do sol e da lua, como uma espécie de “[...] franco protesto contra toda e qualquer espécie de culto do sol” [4] - como o que vimos acima do conflito entre Rá e Apófis e em outras mitologias do Antigo Oriente Próximo. Com isso, a Luz em Gn 1:3, com o seu mostrar-se, é um convite à existência e a ordem de todas coisas, bem como, a demarcação de uma temporalidade não mais cíclica e caótica, mas linear e recheada de propósito - um propósito bom e de descanso [5] . Assim, é a partir dessa Luz primordial que todas as coisas são possíveis, pois nada existe sem que apareça e sem que esteja disposto no tempo.
Ao longo da Bíblia Hebraica e mesmo no NT, essa Luz (‘or) vai ter seu significado ligado a tudo que comunica vida (Jo 1:4), verdade (2Co 4:6), alegre dulçor (Ec 11:7) e pureza (1 Jo 1:5-7). No prólogo de João, que possui inúmeros paralelos temáticos e linguísticos com o início de Gn 1 [6], é dito que Cristo é “a vida e a vida era a luz dos homens” e que também, essa mesma Luz, resplandece diante das trevas - realizando a mesma função descrita em Gn 1:3. Fato é que, do Gênesis ao Apocalipse, há um convite divino constante de que pertençamos a Luz (Mt 5:14-16; Jo 8:12;12:35-36,46; Rm 13:12-14; Ef 5:8-14; Cl 1:12-13) - que pode também ser análoga à presença de Deus ou mesmo inauguração de seu Reino.
Portanto, o autor bíblico elabora intencionalmente o primeiro dia com uma Luz primordial, anterior às luzes do mundo, situando um aparecimento radical sem o qual nada existiria. Na queda humana, o ser humano se vê desvinculado dessa Luz, por via do pecado - caracterizado ao longo de toda Bíblia como uma condição de trevas, desordem e caos. Assim, mesmo que ele continue habitando no mundo, o homem pecador está situado “debaixo do sol”, essa luz menor, na qual tudo que existe é vapor, névoa e vaidade (hevel). É por esta razão, que o convite de Cristo, séculos e mais séculos depois da narrativa criadora, se constitui em afirmar que Ele é a verdadeira Luz, a qual inaugurada e encarnada no mundo, ilumina todo homem (Jo 1:9) e gera possibilidade de reconciliação e vida eterna.
[1] ELIADE, M. O Sagrado e o Profano: A essência das religiões.
[2] WALTON, J. O pensamento do Antigo Oriente Próximo e o Antigo Testamento: introdução ao mundo conceitual da Bíblia hebraica. São Paulo, SP: Vida Nova, 2021, p. 101-102.
[3] Mark, Joshua J.. "Apophis." World History Encyclopedia. World History Encyclopedia, 25 Apr 2017. Web. 31 May 2024. Acerca dos mitos de eterno retorno, segundo Eliade, são narrativas que descrevem a repetição cíclica dos eventos fundamentais da criação cosmogônica, sugerindo que o tempo é cíclico em vez de linear. Esses mitos frequentemente envolvem a recriação periódica do cosmos a partir de um estado primordial de caos ou desordem. O conceito está presente em várias culturas antigas e é central para a compreensão dos rituais e práticas religiosas dessas civilizações. O festival de Akitu, por exemplo, era uma encenação anual dos eventos primordiais da luta cósmica entre Tiamat e Marduk. Ver mais em: ELIADE, Mircea. O Mito do Eterno Retorno. São Paulo,SP: Mercuryo, 1992.
[4] BARTH, K. Church Dogmatics, III, p. 120.
[5] É curioso observar que o desenvolvimento da filosofia e da compreensão da realidade posteriormente se estruturou na compreensão de que o “Ser”, essa dimensão que nos atravessa, se compreende como luz, como um mostrar-se. Husserl, um dos pais da fenomenologia, dirá que “a tanto aparecer, tanto Ser”, insinuando que a medida em que as coisas aparecem, elas ganham seu Ser, propriamente dito. Além disso, a alegoria da caverna de Platão é também um claro exemplo de que a vida verdadeira é aquela que não está exposta nas sombras, na caverna, mas que se idealiza na luz do Sol, onde realmente enxergamos a natureza real da vida. Assim, para a filosofia e em confluência com o texto bíblico, nós existimos como seres vivos, na medida em que aparecemos, quando somos expostos à luz do mundo. Essa é a mesma dimensão averiguada também pelo sábio eclesiástico, ao dizer que a vida humana acontece “debaixo do sol”.
[6] Na Septuaginta, versão grega do AT, a expressão hebraica “bereshit” (No princípio) é traduzida para o grego como ἐν ἀρχῇ (en arché). Curiosamente, essa é também a mesma expressão utilizada por João quando escreve o prólogo do seu evangelho: “No princípio (en arché) era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus”. Sem contar o fato de que Deus, no relato de Gn 1, cria todas as coisas pela Palavra e aqui, a salvação e a chegada do Filho é associada com a Palavra (logos). Assim, a mesma voz que tudo criou no passado tem agora a possibilidade de recriar todas as coisas.